segunda-feira, 16 de julho de 2012

Take it easy. I'm only bleeding - inédita


"I. I who have nothing" - Joe Cocker

              
Eu. Eu que não tenho nada, ouso te querer. Eu que nada posso oferecer, ouso querer tudo. Pelo menos tudo que possa preencher minha vida: você. Sex, drugs and rock'n'roll mineiramente. Meu rock é mpb, my drugs is alchool, e sexo é aquela complicação toda. Sobra pouca coisa para oferecer. Eu, que tão pouco tenho, tanto quero...
               Eu, que só tenho esses braços, longos, que só podem envolver, circular uma cintura, puxar um alguém para mais perto, alguém que aceite um aconchego. Braços que não sabem ficar junto ao corpo, por isso vivem gesticulando, acompanhando a fala, se agitando, como a tentar aumentar a massa corporal, ocupar mais espaço no mundo, quem sabe ser notado por seus olhos, ocupar espaços em você...
               Eu, que tenho apenas esses dedos compridos, indecisos, mãos vazias, carregadas de eletricidade, 440 volts, faíscas saindo pelas extremidades, cargas diferentes se procurando, se atraindo, se encontrando...choques de altas potências ao quadrado elevadas.
               Eu, que só tenho esses cabelos enormes a gritar "eu sou diferente, eu não sou todo mundo, sou outros trezentos, outros trezentos e cincoenta". Eu e meus cabelos longos embranquecendo, mas ainda gritando que valeu o preço de cada fio que perdeu a cor. Gritando que não há o que arrepender de tudo que foi feito, mas gritando também que é preciso cuidar do hoje para que cada minuto atual também valha a pena.
               Eu e meus ouvidos cansados e moucos. Eu e tudo que já ouvi e ainda está guardado em meu cérebro. Eu e minhas 11.783 músicas para serem ouvidas, das quais ouço umas duzentas. Eu e minha voz variável, ora grave, ora taquara-rachada, cantando cerca de cinquenta músicas velhas que falam fundo em minha alma e que entregam meus segredos. Eu e minha memória vacilante, esquecendo letras de músicas, cifras, sons,mas não esquecendo sentimentos e emoções. Eu e tudo que tenho para dizer. Eu procurando ouvidos abertos para os sons que vêm do fundo de um ser humano. Eu e minha meia dúzia de poesias decoradas, que foram escritas por Vinícius ou Drummond, mas que quando as falo, se tornam minhas, transmitem sentimentos meus, direcionados para quem as ouve, mesmo que os sons só atinjam ouvidos vazios, que não ouviriam nem a mim nem a Vinícius. Eu, metade capitão-do-mato e metade escravo fugido.
               Eu e meu peito vazio com letreiro em neon intermitente "Há Vagas". Eu e meu sangue pulsando nas veias, se perguntando se há um destino, um recompensa, uma luz no fim do túnel. Eu, uma locomotiva desgovernada que não sai dos trilhos, mas não para em sua viagem, à procura de uma estação de repouso, de bonança ( puta palavra antiga, mas que é o anseio de todos nós - e ainda acontece de ouvir Edu Lobo cantar nesse exato momento em que escrevo : "Adeus, vou pra não voltar, e onde quer que eu vá, sei que vou sozinho..."). Eu, que ouso ter esperanças de que a vida possa ser boa. Talvez porque ela tenha sido assim desde há muito tempo e porque eu acredite que a vida só vale a pena se a gente for feliz ( lembre-se sempre disso, minha filha Clarita) . O diabo é que a gente teima em só ser feliz dentro de determinadas circunstâncias. Por isso essa militância política, por isso esse conformismo com resultados tão parcos (Perdão. Eles não sabem o que fazem!) Por isso,essa teimosia em querer que outras pessoas sejam felizes com a gente, sem perceber que há pessoas que optam por serem infelizes a qualquer custo, enquanto outras podem ter a chave de sua felicidade. Enquanto outras podem abrir as portas de um Admirável Mundo Novo. Eu e minhas janelas abertas, minhas portas fechados, Knockin', Knockin',Knockin' on heaven's doors. Eu e minhas plantas na varanda, cultivando verdes esperanças, alimentando beija-flores e pendurando mensageiros-dos-ventos, lançando mensagens, olhares, toques. Eu, náufrago solitário em meio à multidão, mandando recados e sem percepção para receber respostas. Eu, emissor sem receptor, me achando estranho, deslocado no tempo e no espaço (pertenço a esse mundo?). Eu e essa vontade de falar, sempre achando que ninguém quer me ouvir. Eu e minhas histórias antigas, meus escritos cifrados, minhas cartas não enviadas, meus bilhetes não recebidos. Eu e essa minha dificuldade de falar, esse desejo que me entendam telepaticamente, ou pelo que canto, ou pelo que vejo, ou pelo que escrevo enigmaticamente, ou pelo que calo, ou pelo que mostro, ou pelo que oculto. Eu e esse outro eu que habita em mim, sem nome, sem rosto e sem história. Esse outro que também sou eu e a quem delego a prerrogativa do irrealizável. Eu que não me entendo e que não entendo o mundo que me cerca, eu que nada sei da arte, mas que deliro com quadros loucos de Dali e me vejo retratado nas Tentações de Santo Antão, nos Sonhos, em Leda e o Cisne. Eu que viajo na voz rouca de Joe Cocker, na voz doce de Adriana Calcanhoto, na voz chocha de Chico Buarque. Eu que queria embalar sonhos de Leda quando a sorte soltar um cisne na noite. Eu que sonho com a noite e sei ver as estrelas, ver a lua, aguardar o pôr-do-sol com nuvens flamejantes como meu desejo. Eu que desejo incendiar o mundo e queimar você sussurrando: "Baby, you light up my fire". Eu, lenha de fogueira, tronco úmido que queima sob protestos de fumaça, olhos ardentes, odores diferentes, essências de madeira e de suor. Marcas pessoais, impressões transferíveis em outras peles. Outras faces, outros perfumes, outros sabores (que gosto desconhecido é esse que advinho na tua boca???).
               Eu, que calo quando devo falar. Eu que não sei decifrar a linguagem do olhar. Eu que nada tenho. Que tenho apenas essa sina de quere bem. Eu que sei apenas carregar uma criança, brincar com ela por me sentir também criança. Eu, que nem sei fazer mágicas, apenas um ou outro milagrezinho. Eu, que não sei cozinhar, sei apenas comprar vinhos e taças e frutas e doces. Eu que só tenho meia dúzia de espelhos que só sabem refletir a verdade. Eu que nem tenho o dom providencial da mentira. Eu que tenho lenços e não tenho ternos, que prefiro a forca à gravata. Eu, que tenho o sono, o cansaço, a preguiça, a coragem de adiar até depois do limite. Eu. Que tenho coleções de leis para serem desrespeitadas. Que tenho como lei orgânica o orgasmo, o organismo, o coração. Que tenho como constituição o coração, como dez mandamentos, o coração.
               Eu, que nada tenho, tenho um coração. Inda se fossem sete, mas só tenho um coração e isso, é só o que eu tenho.
"Baby, all I have is this" (Rod Stewart) 

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