Num desses sábados atarefados, recebi a visita de Salmo. Paciencioso, ele esperou umas duas horas até que eu chegasse em casa. Ele é um desses negros enormes que, no entanto tem o dom de poder ser chamado pelo diminutivo. Salminho estampa no seu sorriso a confiabilidade e o acolhimento.
Nos conhecemos mais ou menos pelos idos de '88, quando eu voltei de uma temporada de moradia em São Paulo, já casado e com meus filhos pequenos. Participamos juntos da Pastoral da Juventude, da qual ele era líder nato. Ele é pelo menos uns dez anos mais novo que eu, mas sempre me considerou um igual seu. De origem humilde, pobre mesmo, mas dotado de muita inteligência e interesse desenvolveu-se muito, intelectual e moralmente.Realizamos muita coisa juntos no Grupo de Jovens e na militância política. Mas um dia ele seguiu outro rumo, foi alargar seu horizonte pelo mundo. Hoje está em Goiânia e havia dois anos que não vinha em Itaú. Me lembro (ô professor Ronaldo, não se deve começar orações com pronome oblíquo - me) de quando ele estava pretendendo se mudar daqui e sem declarar muito, sondava minha opinião. Eu tentava esconder minha aversão à mudança e incentivá-lo, pois sabia que era isso que ele queria e que era melhor para ele. Outra imagem dele que me ficou foi de uma noite em que íamos à pé para uma reunião de CEB's na Vila São Lucas e na estrada escura havia um bêbado caído bem no meio da estrada. Salminho não pensou duas vezes: carregou o homem e o retirou da estrada. Depois ainda voltou contando, rindo, que o cara estava armado. Ele conhecia o povão, sabia infinidades de apelidos. Estava sempre disponível e topava qualquer loucura... Teatros, passeatas, protestos, palestras, orações. Sua disponibilidade e animação fazem falta para Itaú. Seu companheirismo faz falta para mim.
No dia em que ele veio em minha casa ficamos um tempo engatando a conversa, fazendo algumas reminiscências, mas acabamos mesmo foi lamentando algumas mudanças que não fomos capazes de evitar. Comentamos nossas adaptações à nossa realidade, nossa impotência diante de um mundo alienante e nossos protestos surdos: ele com um boné "100% negro", eu com uma camiseta "Tô vendo uma esperança". Avisos de que ainda temos o que dizer, mesmo que poucos queiram nos escutar. Nossa teimosia em ser sementes de esperança e sinais de contradição, nossa resistência pacífica, às vezes um pouco sofrida, pouco compreendida. Acho que ele foi o único a entender meu cabelo comprido, já com os dias contados. Meu grito de que a diferença ainda é possível, embora haja sempre um preço. Somos dinossauros lutando contra a extinção que o mundo teima em afirmar como inevitável.
Haveremos de vencer. Enquanto houver um dinossauro vivo, haverá esperança! Alimentados pela visita de amigos, um moderno e-mail (somos dinossauros, mas não retrógrados), um telefonema. A cada manhã, permaneceremos na estrada, entoando a canção da vida. Há muito tempo Belchior já dizia: "Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto." Em outra música dizia: "Veio o tempo negro e a força fez comigo o mal que a força sempre faz. Não sou feliz, mas não sou mudo: hoje eu canto muito mais."
Saudações a todos os dinossauros. Protejam-se dos meteoros e até a próxima.
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