sexta-feira, 6 de julho de 2012

Overdose - 30/12/2001



          Neste sábado, depois de uma semana atarefada, acordei pensando em um tema para a crônica. O tanto de serviço acumulado para a última semana do ano e última antes de minhas férias não deixou muito tempo para pensar. Além disso, nos últimos dias, as hora vagas foram transformadas em horas de estudo para um Concurso Público Municipal que foi realizado no sábado.
          Em meio a esse turbilhão fiquei pensando em um discurso que tenho meio preparado na memória e que nunca tive oportunidade de usar. Na verdade não têm chegado convites para discursos... Resolvi usá-lo para crônica, mas não se espantem se algum dia ficarem sabendo que usei também em discurso, afinal, esse era seu destino inicial . O tema é uma frase de uma música do Cazuza que sempre me tocou muito: "meus heróis morreram de overdose..." . Sempre digo que uma música só vale a pena ser ouvida e cantada se tiver alguma afinidade com você. Por isso tenho horror à musica breganeja e pagodes caça-níqueis. Mas essa música tem muito a ver comigo.
          A primeira vez que ouvi a palavra overdose foi na morte de Elis Regina, de quem era e ainda sou fã incondicional.. o laudo do medico legista foi implacável: overdose.
Daí consultar um dicionário, juntar os conhecimentos foi um passo. Overdose, exagero, dose acima do limite... Na minha memória há uma imagem inesquecível de Elis cantando "Atrás da Porta" de Chico Buarque, onde ela fala da dor de ser abandonada pelo seu amor. Elis canta e chora. Seu rosto exprime a dor e lágrimas reais escorrem pelo seu rosto... Entendi a overdose de Elis: foi uma dose insuportável de emoção, de sentimento. Foi uma dose elevadíssima de sinceridade, de envolvimento, de paixão...
          A autópsia disse que foi de cocaína, mas Elis viveu e morreu de overdose de paixão.
          Desde então comecei a reparar que as pessoas que eu admirava muito viviam e morriam no exagero, na overdose. Muito tempo depois, Cazuza confirmou, ele próprio vítima de uma vida over, que o fez vítima de aids.
          Em 1987 foi a vez de Carlos Drummond de Andrade, o poeta mineiro que cultuou em suas poesias a terra, a amargura, a família, morrer apenas doze dias depois da morte de sua filha Maria Julieta. Overdose de sentimentos, de ligação com a filha... Mais ma vez a overdose de paixão...
          Que dizer de Janis Joplin e Jimi Hendrix, em suas overdoses de música, seus rock/blues executados com o corpo e a alma, visceral e sensualmente? As overdoses de anfetaminas foram pequenas perto de suas paixões pelo movimento hippie.
          E Che Guevara, hoje estampado nas camisetas de jovens que as vezes nem sabe quem é aquele rapaz de boina que dizia: "hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás"? Este também morreu e viveu em overdose. A sua foi de crença na revolução, crença que poderia mudar o mundo. Deixou a revolução vitoriosa em cuba e partiu pelo resto de nossa América, a plantar as sementes da transformação. Ganhou uma medalha no Brasil, uma emboscada na Bolívia, um tiro traiçoeiro num quartel sujo. Ganhou também o direito de estar na camiseta dos jovens, ganhou uma poesia de Ferreira Gullar e ganhou a minha admiração. Deve estar feliz com sua overdose.
          E Dom Pedro Casaldáliga, espanhol que saiu de sua terra para ser bispo no coração do Brasil? Este vive até hoje em sua overdose de amor à sua Igreja, ao povo simples e explorado das áreas de conflito de terras. Está lá com seu corpo magro vestido em roupas simples, sem anel de ouro. Seu palácio episcopal é uma casa com chão de terra batida. É de lá que sai seu grito , é de lá que sai seu exemplo e suas poesias repletas da realidade do povo sofrido. É de lá que ele fala em outro grande herói que viveu e morreu por causa da overdose: Jesus Cristo - overdose de amor, paixão, crença...           No final da noite de sábado, a televisão noticiou a morte de Cássia Eller. Adivinha a causa da morte? Overdose. Não sei qual foi a overdose de Cássia Eller, mas espero que ela esteja satisfeita. Gostava dela cantando as versões originais de "Por Enquanto" do Legião Urbana e "Malandragem" do Cazuza.. As versões novas, feitas para o disco Acústico MTV me pareceram sem alma, muito comerciais. Mesmo assim vou me lembrar de Cássia Eller. Ela não vai para a minha galeria de heróis, conheci pouco dela para isso, por enquanto. Mas vou procurar entender sua overdose.

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